Sensibilização central, a chave da dor crônica
Sensibilização central, a chave da dor crônica.
Dor crônica é uma condição que afeta cerca de 60 milhões de brasileiros, sendo que 50% dessas pessoas apresentam sério comprometimento em sua rotina.
Cerca de um terço da população apresenta algum tipo de dor crônica durante a vida, por isso entender os seus mecanismos é o primeiro passo para resolver esse problema mundial.
A dor crônica é reconhecida pela OMS como uma doença sendo uma das mais prevalentes em todo o mundo, levando a incapacidades substanciais e enormes custos para a sociedade.
No entanto, o seu diagnóstico é um desafio para os médicos, devido ao caráter multifatorial onde muitas vezes um dano tecidual, uma inflamação não são suficientes para explicar a intensidade da dor ou a incapacidade com alterações na qualidade de vida.
A dor pélvica crônica (DPC) é definida como uma dor em baixo ventre com duração por mais de seis meses que afeta cerca de 10 a 20% das mulheres em algum momento de suas vidas.
A Síndrome de dor pélvica crônica (SDPC) é a ocorrência de DPC em pacientes que apresentam lesão menor que a dor apresentada com falhas de tratamentos anteriores e alterações na dinâmica familiar, social, funcional decorrente das alterações cognitivas, comportamentais, sexuais, emocionais.
A endometriose é reconhecida como uma das principais causas de DPC ocorrendo em mais de 70% das mulheres. Sabemos que é comum haver pouca relação entre a gravidade da endometriose e a intensidade de dor sendo muitas vezes a endometriosis apenas a cereja do bolo que acaba gerando um desequilíbrio geral.
A cirurgia nem sempre é eficaz para eliminar a dor com uma persistência e ou recorrência da dor que varia de 10 a 40% das pacientes.
Algumas destas pacientes podem apresentar um fenômeno denominado sensibilização do sistema nervoso central responsável pela memória de dor.
Essa memória da dor ou sensibilização central explica as alterações observadas em situações clínicas de dores agudas e crônicas, onde as sensações dolorosas existem mesmo na ausência de doença periférica ou estímulos nociceptivos.
A sensibilização central é um fenômeno muito frequente resultante de um longo período de dor capaz de provocar mudança no Sistema Nervoso Central (SNC).
Apenas algumas pessoas experimentam sensibilização central. Pesquisas iniciais mostram que são muitos fatores: genética, exposição crônica à dor, estressores, experiências traumáticas e gênero.
As mulheres (devido ao estrogênio) são até 2 vezes mais propensas do que os homens a ter essa condição após estímulos dolorosos de qualquer natureza.
O SNC é composto basicamente pela medula e pelo cérebro. Essas mudanças não podem ser vistas por exames convencionais, mas fazem com que as pessoas sintam mais dor.
A sensibilização periférica, diferente da central, acontece por exemplo após uma queimadura na pele que a deixa mais sensível, mas sem gerar mudanças no Sistema Nervoso Central, permitindo uma recuperação após processo de cicatrização.
Infelizmente, na sensibilização central, quando os nervos da sua medula se sensibilizam e quando há alterações cerebrais significativas as mudanças não são tão facilmente reversíveis.
A ideia básica deste fenômeno é que o Sistema Nervoso, após um tempo significativo de dor, passa a se tornar cada vez mais sensível aos diferentes estímulos – é como se o corpo se tornasse hiper especializado em perceber tudo como dor.
A dor é uma sensação ruim (experiência subjetiva desagradável )que sentimos quando algo de errado está acontecendo com o nosso corpo, um mecanismo de alerta e defesa para nos proteger de estímulos potencialmente nocivos.
Por meio de células especiais chamadas de nociceptores (são terminações nervosas sensoriais responsáveis pela resposta a um estímulo que possui potencial de dano) a dor é detectada e transmitida através de fibras nervosas até o SNC.
Em todas as partes de nosso corpo existem nociceptores, menos no nosso cérebro que não é capaz de sentir dor.
A membrana que recobre o cérebro (meninge) é repleta de nociceptores, e ela sim é capaz de sentir dor.
Para que os nociceptores sejam ativados, eles precisam ser estimulados, e esses estímulos podem ser elétricos, químicos, térmicos ou mecânicos.
Os nociceptores silenciosos são receptores inativos e não captam, respondem ou sentem estímulos normais. Somente quando estimulados por uma ameaça em potencial ao organismo humano, eles desencadeiam o reflexo da dor.
As dores podem ser classificadas em função do tempo, localização, local e interpretação.
- Dor aguda, manifesta-se por um período de tempo curto, menos de 1 mês, e é facilmente identificada. Funciona para o corpo como um sinal de alerta para inflamações, lesões, doenças.
- Dor crônica, manifesta-se por um período de tempo muito longo, mais de 3 meses, e pode debilitar, exigindo maior atenção por parte de quem a está sentindo.
- Dor cutâneas, localizadas na região da pele e são, geralmente, de curta duração.
- Dor somática, tem origem em ligamentos, ossos e tendões. Essas regiões não possuem muitos nociceptores, o que gera uma dor mal localizada e de longa duração.
- Dor visceral, localizada em órgãos e cavidades internas do corpo, e que possuem poucos nociceptores. Sensação intensa de dor, mas difícil de localizar. Muitas vezes o paciente sente dores em regiões totalmente diferentes do verdadeiro local da lesão.
- Dor recorrente, apresenta períodos de curta duração, porém que se repetem com frequência, podendo ocorrer durante toda a vida, mesmo sem estar associada a um processo específico.
- Dor nociceptiva, ocasionada por uma lesão tecidual contínua e, neste caso, o Sistema Nervoso Central (SNC) se mantém íntegro.
- Dor neuropática ocorre quando nervos no SNC ou periférico não estão funcionando corretamente.
- Dor mista, quando a dor tem origem nociceptiva e neuropática, como lombociatalgias.
- Dor fantasma é a dor sentida em uma parte do corpo perdida ou a partir da qual o cérebro já não recebe sinais. É um tipo de dor neuropática.
- A dor nociplástica é definida como a dor que surge de nocicepção alterada com a sensibilização como o principal mecanismo subjacente.
A modulação da dor possui um valor biológico adaptativo, pois é através dela que uma dor pode ser suprimida em situações de lesão ou de ameaça, em uma reação de luta ou fuga.
No mecanismo de dor os estímulos químicos, térmicos ou mecânicos estimulam os nociceptores internos em uma variedade de órgãos como os músculos, tendões, juntas ou articulações, bexiga, intestino e ao longo do trato digestivo.
Outros nociceptores respondem a nenhuma dessas modalidades, embora eles possam responder a estímulos sob um estado inflamatório e receberam, por esse motivo, uma designação mais poética: Nociceptores Silenciosos ou Dormentes.
Os nociceptores possuem dois diferentes tipos de axônios.
O primeiro são as fibras axonais A Delta mielinizadas e podem permitir um potencial de ação capaz de viajar na velocidade de aproximadamente 20 metros por segundo em direção ao SNC. O outro tipo, as fibras axonais “C”, é um condutor mais lento.
Como resultado disso, a dor origina-se em duas fases, sendo a primeira fase mediada pelas fibras de rápida condução (fibras axoniais ADelta) e a segunda fase deve-se às fibras de condução lenta (fibras axoniais C).
A dor associada às fibras de rápida condução podem ser correlacionadas com uma dor inicial extremamente aguda e cruciante, ou seja, “uma pontada fortíssima”.
A segunda fase apresenta uma dor mais prolongada e menos intensa como resultado de um dano tecidual.
Ao atingir o tálamo, a informação é processada no núcleo ventral posterior e enviado para o córtex cerebral no cérebro.
Como se trata de um caminho ascendente para o cérebro que inicia a realização da consciência da dor, há também um caminho descendente que modula a ação sensorial da dor.
O cérebro pode requisitar a liberação de hormônios específicos ou substâncias químicas que possuem efeito analgésico o qual pode reduzir ou inibir a sensação de dor. A área do cérebro que pode liberar algumas dessas substâncias e hormônios é o hipotálamo.
Um estímulo eferente é então enviado pelo cérebro em resposta a dor gerando contratura muscular e hiperalgesia, ou seja, um estímulo de baixa intensidade de uma atividade regular, inicia uma sensação dolorosa.
A inflamação é uma comum causa que resulta na sensibilização dos nociceptores.
Normalmente, a hiperalgesia cessa quando a inflamação desaparece. No entanto, algumas vezes, defeitos genéticos e/ou injúrias repetidas podem resultar em “alodinia” (significa “outra dor”, é uma resposta exagerada para um estímulo completamente não-nocivo que pode ser estático ou mecânico como toque leve causando extrema dor).
A “alodinia” pode ser causada quando um nociceptor é danificado nos nervos periféricos. Isso pode resultar em desaferenciação, ou seja, desenvolvimento de diferentes processos centrais do nervo aferente sobrevivente.
Nessa situação, o axônio da raiz dorsal sobrevivente do nociceptor pode fazer contato com a medula espinhal mudando, então, a transmissão dos sinais.
Quando a sensibilização ocorre, a pessoa sente dor em situações que não deveriam ser dolorosas. O Sistema Nervoso Central passa a interpretar tudo como dor.
Se fizermos uma analogia ao alarme usado em nossas casas ou trabalho entendemos como esse sistema dispara quando tudo “entra” em seu campo de identificação.
Logo, quando o Sistema Nervoso Central já convive com a dor por um tempo prolongado passa ser hipersensível a qualquer estímulo.
As consequências da sensibilização central envolvem situações que acabam alimentando o próprio sistema, tornando-o cíclico.
A falta de atividade e até limitações nos movimentos do dia a dia geralmente acarretam alterações emocionais, podendo levar a condições como a ansiedade e depressão, o que contribuirá para o sistema manter-se ainda mais em alerta.
Lidar melhor com o medo e a ansiedade de sentir dor pode ser um passo bastante importante no sentido de dessensibilizar o SNC.
É possível tratar a dor crônica?
A fisioterapia tem como objetivo levar o paciente à recuperação do controle de sua própria vida de modo que se perca o medo trazido pelas dores crônicas, enfrentando o problema e recuperando sua qualidade de vida!
Ela permite ainda entender as limitações e disfunções provenientes desse problema, o qual afeta o sono, o trabalho, e toda a vida do paciente.
Ao trabalhar com um fisioterapeuta que entende a dor, será possível tratar os sintomas da dor crônica de maneira holística, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida.
O fisioterapeuta estabelecerá objetivos específicos e que podem ser alcançados com o paciente, sendo adequados ao seu estilo de vida.
A fisioterapia pode tratar a dor crônica com os seguintes métodos:
- Educando o paciente e permitindo que o mesmo compreenda melhor como as dores crônicas funcionam, sendo este um passo importante no gerenciamento da doença.
- Aconselhando e prescrevendo atividades físicas indolores ou que façam o paciente sentir o mínimo de dor possível, a fim de aumentar a mobilidade de forma gradual, além de melhorar a flexibilidade e o ganho de força.
- Utilizando da massoterapia e alongando os membros afetados de modo a se obter melhoria na locomoção e amenização das dores.
- Usando abordagens psicológicas como, por exemplo, a terapia comportamental da cognição para controle da dor, a qual pode ser realizada com o paciente sozinho ou acompanhado de outros pacientes.
- Acupuntura, a qual é muito eficiente no tratamento da dor crônica em partes do corpo como as costas, lombar, pescoço, e até mesmo nos casos de enxaqueca e artrite.
- Eletroterapia, que possui opções de tratamento muito eficazes para diminuir as dores crônicas se bem indicado.
- Tratamento com calor e frio, método de grande eficácia para dessensibilizar a dor – o calor ajuda no relaxamento muscular, oferecendo estímulo à circulação sanguínea.
- Outro método usado na fisioterapia para tratar a dor crônica é a prática de pilates (com acompanhamento especializado) ou de exercícios posturais como o RPG, especialmente para dores crônicas no pescoço ou nas costas, pois é uma atividade física de baixa intensidade e que não exige muito desgaste físico.
Utilizando-se dessa combinação de tratamentos, os pacientes que sofrem de dor crônica podem ter maior controle da dor e voltarem a participar das atividades diárias.
A dor crônica é uma doença muito difícil de ser curada, pois trata-se de um problema complexo, que exige um trabalho interdisciplinar, envolvendo profissionais de diferentes especialidades, tais como médico especialista da dor, fisioterapeuta, psicólogo e em alguns casos psiquiatra e até nutricionista.
São muitas as opções de tratamento e é essencial que os profissionais envolvidos trabalhem de forma integrada, em um constante diálogo, para promover a saúde do indivíduo de forma global visando tratar a origem do problema e não somente os seus sintomas
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Gustavo Safe é diretor e médico especialista em endometriose no Centro Avançado em Endometriose e preservação da fertilidade, Clínica Ovular Fertilidade e Menopausa e Instituto Safe. Estudioso dos assuntos relacionados à saúde da mulher com enfoque na dor pélvica, infertilidade, preservação da fertilidade, endometriose, endoscopia ginecológica e cirurgias minimamente invasivas.
Se você tem dúvidas ou quer sugerir temas para a coluna, envie e-mail para gustavo_safe@yahoo.com
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